sábado, 5 de fevereiro de 2011
Como garantir uma colisão aérea - e como evitá-la
O relato
Estou a bordo do Paulistinha, fazendo um corriqueiro vôo de instrução. No circuito de tráfego há um outro Paulistinha, sem rádio. Há um avião chegando sei lá de onde, anunciou há pouco estimar mais dois minutos para ingresso na perna do vento. Há, no setor Wisky da pista, um helicóptero biplace realizando treinamento de auto-rotação e também um ultraleve fazendo um vôo de lazer.
Já quase no través da cabeceira de pouso realizo o check de rotina. Magnetos e master ligados. Mistura rica. Ar quente aberto e seletora no inferior. Olho para fora para verificar minha posição relativa com a pista e aí me impressiono. Vejo o outro Paulistinha fazendo uma manobra quase acrobática sobre a cabeceira e me impressiono. Tudo bem que vez ou outra um instrutor se empolga e faz alguma brincadeira, uma passagem baixa ou algo assim, mas o que eu estava vendo extrapolava todo bom senso até limites inaceitáveis. Meu instrutor comentou, serenamente: "Puta que o paril! Que merda! Olha aquilo! Caralho!"
Foi aí que entendi: vi um outro avião decolando no sentido oposto, passando talvez a uns 10 metros do Paulistinha, não muito mais que isso. Não fosse pela curva ousada eu teria presenciado uma colisão no ar. Chamamos o avião no rádio. "Aeronave que acabou de decolar, na escuta?" "Monomotor asa baixa que acabou de decolar, responda! Na escuta?". E nada, absolutamente nada. Incomunicável.
Até que, uns 10 minutos mais tarde, ele chama na fonia. Identifica-se dizendo que foi o avião que "decolou de frente com o avião em instrução". O cara que estava voando o helicóptero, e que não tinha absolutamente nada a ver com o caso, não conteve a raiva. Disparou na fonia: "Ah, então você é o ANIMAL que quase matou o pessoal agora? Você aprendeu a voar onde? Não tem noção de que pode acabar matando alguém fazendo merda por aí?"
A avaliação
O Paulistinha em instrução, que se salvou por pouco. Estava sem rádio. Embora isso pareça contar contra ele, não é crime, não é proibido e não é um erro voar sem rádio. Mas isso exige atenção redobrada ao ambiente externo. Na final para o pouso, o instrutor resolveu verificar a pista, olhando por cima do ombro do aluno. Foi aí que viu o avião a tempo de realizar a manobra evasiva. Ponto para o instrutor.
O avião que decolou no sentido oposto era um Bonanza. Estava com o rádio em perfeitas condições. Ao que tudo indica o piloto ligou o rádio e simplesmente não verificou que este estava na frequencia errada. Chamou na fonia e nenhuma aeronave respondeu. Concluiu com isso que estava sozinho e decolou como bem entendeu. E quase morreu.
Como dizia Carl Sagan a respeito de conhecer o que se passa no mundo: a ausência de evidência não é evidência de ausência! E foi essa a confusão que cometeu o piloto do Bonanza. Chamou no rádio. Ninguém respondeu. Conclusão: não tem ninguém na área. Conclusão errada! Uma verificação visual teria mostrado diversas aeronaves operando no circuito. Estariam todas elas sem rádio? Ou seria o rádio do Bonanza que estava com problemas? Em uma tentativa de ligar e desligar o rádio o problema seria descoberto: a frequencia errada.
E mesmo assim, mesmo sem que esse erro fosse descoberto, a falha em realizar uma inspeção visual do tráfego local é imperdoável. A rotina e a confiança de que os sistemas sempre funcionam quase fizeram mais uma vítima. Talvez antes de ingressar na pista o piloto do Bonanza tenha falado em voz alta na cabine: "Perna do vento livre, base livre, final livre". Talvez tenha olhado rapidamente em direção ao final da pista. Talvez nem tenha olhado, confiante que estava de que não havia ninguém na área.
E a pergunta fundamental: em que momento teria sido possível evitar este incidente?
O pátio de onde saiu o avião fica bem próximo à pista. O estacionamento onde o piloto do Bonanza deve ter deixado seu carro, também. E o acesso ao aeródromo cruza o eixo da pista, próximo à cabeceira e dando visão de toda a operação que ocorre no momento. Concluido: se durante a preparação de seu vôo o piloto estivesse atento às operações em andamento no aeródromo então o silêncio no rádio teria despertado enormes suspeitas. "Alguém na escuta? ... Ué, cadê aquele pessoal todo que eu vi operando enquanto estava preparando o avião?". E, além disso, uma inspeção visual do tráfego vai além de simplesmente falar "perna do vento livre, base livre, final livre". Envolve efetivamente procurar alguém mais lá em cima. E é sempre importante verificar a cabeceira oposta, especialmente em dias em que o vento está ambíguo. Mas e se algum maluco está pousando com vento de cauda? Então não tome a biruta por evidência (não soa uma recomendação óbvia?) e verifique sempre as duas cabeceiras.
O mesmo tipo de desconfiança vale para os equipamentos a bordo. Ninguém respondeu no rádio: será que há algo de errado?
Na maior parte das vezes este tipo de zelo pode ser um simples preciosismo. Vez ou outra, contudo, é o que vai salvar sua vida.
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3 comentários:
Nossa. Que complicado isso! Realmente, o piloto deveria ter verificado o circuito, a frequencia que estava no rádio (podendo simplesmente pedir confirmação de outros pilotos na frequencia) além de claro observar muito atentamente as operações de trafego. Acredito que as vezes o piloto acaba ficando muito confiante, ou voar acaba virando uma rotina para ele, que ele fica desatento para coisas básicas.
Todo mundo faz alguma besteira na vida porque acabou agindo no "automatismo". A questão é que na aviação isso não pode acontecer. Só que, sendo humano deixar que a rotina e o cansaço levem a isso, é preciso sempre preparo e atenção para não se deixar virar vítima dessa fraqueza!
Caracas!!!
Belíssimo texto Axel, show!
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